Você certamente já deve ter ouvido falar de “interpretação”. As traduções orais que ouvimos ao assistir a casamentos reais ou à missa do galo são exemplos de interpretação. Essa interpretação, no entanto, conhecida como “interpretação de conferência”, apresenta algumas características bem distintivas da interpretação forense, objeto e foco desta escola online. A interpretação forense, por vezes associada a um ramo da interpretação comunitária, é a tradução oral que ocorre em ambientes judiciários e é um elemento fundamental para a implementação do devido processo legal e de asseguração da ampla defesa e do contraditório no processo penal.
Imagine-se detido pela polícia de um país cuja língua você não domina. Você é suspeito de alguma violação, é encarcerado e aguarda julgamento. Como saber se seus direitos de se defender e de apresentar os fatos de acordo com a sua perspectiva serão respeitados se você não consegue se comunicar com as autoridades locais? São em circunstâncias como essa que a atuação de um intérprete forense é indispensável já que, apenas ao ter acesso a esse serviço linguístico, o acusado poderá exercer direitos assegurados não apenas na legislação doméstica, mas também em tratados internacionais. Consequentemente, a interpretação forense pode ser entendida como uma ferramenta de acesso a direitos fundamentais, acabando ela própria, então, se tornando um direito elementar já que se um réu estrangeiro não consegue compreender o conteúdo de requerimentos, decisões, documentos, depoimentos e reuniões que constituem o processo legal, não será capaz de defender-se adequadamente.
Primeiramente, o ambiente de uma sala de audiência, por exemplo, é bastante diferente de uma cabine de interpretação à prova de ruídos ou de uma sala de reuniões. Enquanto em um ambiente negocial ou de conferências, o intérprete lida com pessoas de nível educacional equivalente e pode ainda reformular, esclarecer e simplificar discursos, em uma audiência criminal o intérprete forense lida com pessoas de níveis educacionais muito diversos e tem que transmitir fielmente os discursos proferidos nos mais diversos estilos, não podendo reformulá-los, corrigi-los ou simplificá-los, sob pena de comprometimento da interpretação pela perda de autenticidade das mensagens. Ademais, a sala de audiência, diametralmente oposta à uma cabine de interpretação, não proporciona um ambiente tranquilo que facilite a concentração e o trabalho do intérprete. Muito pelo contrário, em uma audiência criminal o intérprete forense senta-se próximo do réu estrangeiro e deve, com todas as distrações e barulhos, ouvir pronunciamentos do juiz, do procurador, do advogado, das testemunhas e do réu e retransmiti-las na língua de chegada no ouvido do réu. É por conta dessas especificidades que a interpretação forense se distingue da interpretação de conferência, por exemplo, e exige, do intérprete, conhecimentos e competências particulares para atuar em tais ambientes.
A tradução e interpretação são competências específicas que exigem conhecimentos declarativos e operativos que ultrapassam o mero conhecimento de duas línguas. A atuação como intérprete forense exige, entre outras coisas, domínio sólido de duas línguas e suas variedades, conhecimento de terminologia jurídica e dos procedimentos e ritos comuns ao âmbito judiciário, por exemplo; além das técnicas de interpretação à prima vista, interpretação simultânea e consecutiva. Ademais, é necessário respeitar algumas diretrizes de atuação (como códigos de ética que requerem a observância aos preceitos de confidencialidade, imparcialidade, acurácia e etc) e o reconhecimento dos limites de suas próprias habilidades, para que possa discernir se possui a capacidade técnica e psicofisiológica para atuar em determinadas situações.
No Brasil, a interpretação forense não é uma atividade regulamentada. Isso significa que qualquer pessoa que tenha domínio das línguas exigidas pode atuar como intérprete. O acesso aos serviços de interpretação no Brasil é assegurado pela legislação doméstica, como a resolução do CNJ n° 405/2021, que garante a presença de intérpretes em processos penais em que configurem imigrantes. Contudo,no que tange os serviços linguísticos de tradução e interpretação,a justiça brasileira ainda é pouco estruturada e não apresenta um sistema de formação, certificação e credenciamento de intérpretes, fazendo com que a atuação de contratação desses profissionais aconteça em formato ad hoc. Os intérpretes forenses geralmente são pessoas conhecidas de juízes ou servidores do Judiciário com conhecimento do português e de alguma língua estrangeira. Não há prova de seleção, exigência de comprovação da competência linguística ou entrevista prévia padronizada. Quando é identificada a necessidade de uma dada língua, a secretaria do juízo competente tenta localizar algum falante do idioma em questão e o convida a atuar como auxiliar da Justiça, sem nenhuma exigência de formação específica em interpretação. Essa falta de sistematização na contratação de intérpretes qualificados pode prejudicar todo o processo penal e tende a inviabilizar a conclusão do processo. Somado a esse cenário, há também o despreparo de juízes, procuradores, advogados e defensores públicos que, desconhecendo como sessões mediadas por intérpretes devem ocorrer, dirigem-se aos intérpretes usando o discurso indireto (na terceira pessoa do singular), em vez de dirigirem-se diretamente ao réu, por exemplo.
O juridiquês que permeia os processos penais no Brasil, com construções longas e confusas, à nível técnico, apresenta uma grande dificuldade a intérpretes. Ademais, os múltiplos cenários de atuação em que o intérprete é chamado a atuar no processo penal empresta complexidade ainda maior à sua atividade. São no mínimo seis momentos processuais distintos em que o intérprete forense atua na Justiça Federal em casos envolvendo réus estrangeiros: 1) na entrevista prévia reservada com o defensor; 2) nas explicações preliminares do juiz; 3) na oitiva das testemunhas; 4) no interrogatório do réu estrangeiro; 5) nas alegações finais e na leitura da sentença; 6) na discussão de eventual apelação com o defensor. Cada um desses momentos processuais envolve situações, atores e discursos diversos, exigindo do intérprete o domínio e o uso de técnicas interpretativas distintas.
Todas as características aqui atribuídas à interpretação forense a tornam a “prima não tão glamourosa” da interpretação de conferências. Atuar em ambientes com grandes níveis de complexidade terminológica e pressão psicológica , em situações em que a liberdade e direitos de uma pessoa estão em jogo, a distinguem de outras atividades linguísticas.
Referências:
NORDIN, J. Introdução à Interpretação Forense no Brasil. [s.l.] Transitiva, 2018.